Embaixadores do Carnaval

Embaixadores do Carnaval

28/01/2025 28/01/25

Mário Lima Cardoso, o Mariozinho, animava os bailes de Carnaval e as rodas de samba no ECP, legado que os filhos, Odilon, Batata e Leo, mantêm vivo


Se Carnaval é samba, suor e folia, a coroa do reinado de Momo no ECP tem um dono inconteste: Mario Lima Cardoso, o Mariozinho. Ele criou e comandou durante anos o batuque que virou tradição, animando os fins de semana no Bar da Piscina, nos anos 1980 e 1990. Era a figura que fazia graça pelo salão durante os memoráveis bailes de Carnaval do Clube. 

De microfone em punho e iluminado por um feixe de luz que acompanhava seus passos, Mariozinho ia abordando os foliões, fingindo que os entrevistava. Todos embarcavam no jogo de faz de conta e se divertiam com as perguntas. Depois, ele sempre subia ao palco e se integrava aos músicos da banda que estivesse tocando, fazendo a marcação de marchinhas e sambas com seu surdo de precisão implacável.

Em uma espécie de ensaio dos blocos que iriam se transformar na marca do atual Carnaval paulistano, Mariozinho criou um bloco formado pelos associados do ECP, que se concentrava junto aos muros do Clube, na Faria Lima, e saía pela avenida, ali nos anos 1990. Deu tão certo que o ponto atraiu outros blocos e a prefeitura institucionalizou a festa, batizando-a de Pholia na Faria. “O meu pai é, de fato, a grande referência quando se trata de samba e Carnaval no ECP”, diz Odilon Cardoso. Ele, ao lado dos irmãos Marco Antônio, o Batata, e Leo, são hoje os responsáveis por manter o legado carnavalesco da família Cardoso no ECP e fora do Clube, como sempre foi o desejo do pai.

Mariozinho nasceu em São Paulo, passou a infância em Niterói (RJ), e voltou à cidade natal, onde fez a vida como cirurgião-dentista. A mãe tocava piano e ele também, ainda que não tivesse estudado teoria musical e que sofresse com a audição bastante prejudicada. “Sou um surdo que toca de ouvido”, costumava repetir, debochando da própria deficiência. Odilon lembra que, quando criança, ele e os irmãos quase não viam o pai durante a semana. Mariozinho tinha vários empregos. Saía cedo e voltava tarde, quando os garotos já estavam na cama. Nos fins de semana, para compensar, juntava os filhos para dar longas voltas de carro pela cidade. A trilha sonora dos passeios era sempre a mesma: sambas-enredo que rolavam sem descanso no toca-fitas do carro.

A paixão do pai moldou o gosto musical e virou referência para os filhos. Quando garotos, Odilon e Batata estudavam na mesma classe na escola e receberam como tarefa apresentar uma pesquisa sobre Tiradentes. Em vez de procurar nos livros, eles se lembraram de um antigo samba-enredo do Império Serrano que exaltava a história do herói da Inconfidência. Baixaram a letra da música para o papel e entregaram o trabalho. “A professora nos chamou lá na frente e perguntou o que era aquilo. Explicamos que era um samba-enredo e começamos a cantar. A gente sabia a letra de cor. Tiramos dez”, lembra Batata.

Além dos passeios musicais, a veia boêmia de Mariozinho se traduzia numa casa alegre, sempre aberta à música. O sobrado no bairro da Vila Mariana tinha garagem na frente e uma sala na entrada, que se transformavam em espaço de ensaio nos finais de semana. Portas abertas, era só ir chegando. Certa vez, um músico deixou ali uma bateria e nunca a resgatou. O instrumento foi devidamente desmembrado por Mariozinho, que tinha o costume de distribuir os tambores e pratos da finada bateria para quem quisesse participar do batuque.

O bloco Doentes da Sapucaí sai nas ruas da Vila Mariana, em 2023
Foto: Arquivo pessoal

Foi esse espírito que Mariozinho plantou no ECP organizando as épicas rodas de samba no Bar da Piscina. A cantoria juntava o pai, os três filhos, músicos convidados, a criançada que Mariozinho sempre fazia questão de chamar, e aos poucos foi agregando os associados que tocavam ou que gostavam de samba. Em pouco tempo virou tradição. Eram maratonas musicais que atravessavam o sábado até o Bar da Piscina fechar, por volta das sete da noite — muito cedo para quem, como Mariozinho, era conhecido pela frase “boemia não tem meio expediente”.

Roda de samba no Bar da Piscina. Mariozinho é o de camisa listrada
Foto: Arquivo pessoal

Pai e filhos também não perdiam os desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro. No primeiro deles, em 1978, o patriarca foi arrebatado pelo samba-enredo da União da Ilha do Governador, convertida em sua escola de devoção. “O Amanhã”, que virou grande sucesso na voz da cantora Simone, começava assim: “Como será o amanhã/ Responda quem puder/ O que irá me acontecer/ O meu destino será como Deus quiser”.

Até hoje Odilon organiza todo ano uma caravana de foliões, entre eles muitos associados do ECP, para o Carnaval carioca. O grupo já chegou a reunir mais de 100 foliões. O programa inclui desfilar em uma escola do Grupo Especial — em geral a primeira a entrar na avenida — e depois acompanhar as apresentações das demais escolas nas arquibancadas da Sapucaí. A experiência imersiva no samba carioca é completa. Odilon reúne sambistas amigos ali mesmo, na concentração do desfile, que promovem um esquenta particular para os foliões paulistanos, antes de o pessoal ir desfilar na passarela do samba.

Odilon na Sapucaí com família (à esq.) e com foliões (a
cima)
Foto: Arquivo pessoal

A folia, atualmente em São Paulo, acontece principalmente na rua, em contraste com a época em que clubes como o Pinheiros celebravam Momo com grandes bailes durante as quatro noites do Carnaval. “Eram festas que reuniam mais de 5 mil pessoas no salão”, diz Batata. Naquele tempo, recorda, depois que o baile acabava, já na madrugada, a turma do samba do Bar da Piscina estendia a folia, subindo no palco com seus instrumentos e tocando por mais meia ou uma hora. “Aí, a gente terminava a noite invadindo as piscinas e caindo na água, uma loucura.”

Os banhos de piscina depois dos bailes, assim as rodas de samba, foram perdendo a força com o passar dos anos, principalmente depois que a alma da folia se foi. Mariozinho morreu em 2010, aos 83 anos. Antes, porém, houve tempo para mais uma memorável roda de samba no Clube. Quando ele completou 80 anos, em 2007, os filhos organizaram uma festa surpresa no Bar da Piscina regada a chopp e, claro, muita música. Para cantar os sambas-enredo, os irmãos “importaram” do Rio de Janeiro o puxador Dominguinhos do Estácio, que passou a limpo o repertório preferido do aniversariante. “Meu pai ficou emocionado quando chegou ao Clube e viu o Dominguinhos. Foi uma comemoração inesquecível”, recorda Batata.

Antes de partir, Mariozinho pediu aos filhos que dessem continuidade ao seu legado. O samba ainda acontece no Clube, sob a batuta dos irmãos Cardoso, geralmente para animar os campeonatos de Futevôlei e Beach Tennis. E, todo final de ano, eles promovem o Estraga Ceia, animada roda de samba que acontece no dia 24 de dezembro e que costuma fazer jus ao título. O derradeiro desejo de Mariozinho foi que os “meninos” colocassem o bloco na rua. E, em 2018, por iniciativa de Odilon, o bloco Doentes da Sapucaí fez a sua estreia no Carnaval paulistano, desfilando todos os anos desde então pelas ruas da Vila Mariana — e com muitos pinheirenses entre os foliões.

Mariozinho e as netas no Baile Matinê de 1997



Fotos: Centro Pró-Memória

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