“Minha filosofia é recuperar os movimentos que a vida roubou dos atletas”

“Minha filosofia é recuperar os movimentos que a vida roubou dos atletas”

27/09/2024 27/09/24

A infância perdeu movimentos, afetada pela tecnologia e pelo sedentarismo. Por isso, a formação esportiva deve ser generalista, e, a partir da adolescência, a preparação física precisa recuperar aqueles movimentos para ajudar na evolução de jovens atletas.

Essa é a principal diretriz de Valdir José Barbanti, 76, à frente do CIAA, o Centro Integrado de Apoio ao Atleta.

Barbanti foi atleta do ECP e se destacou no Atletismo, com sete títulos de campeão brasileiro e três de campeão sul-americano. É professor emérito da Escola de Educação Física e Esporte da USP, após uma carreira de quarenta e oito anos. E também foi preparador físico da seleção brasileira masculina de Basquete na época da medalha de ouro no Pan-Americano, em 1987, sobre os Estados Unidos.

Benemérito do Clube, ele está há um ano de volta ao cargo de diretor do CIAA, que ajudou a fundar nos anos 2000, e publicou recentemente seu vigésimo terceiro livro, O Valor do Movimento Humano. Só neste ano, o CIAA já atendeu 781 atletas, a maior parte dos quais (427) são associados da base.

Pinheiros – A que você atribui seu talento no Atletismo?
Barbanti – Eu tinha talento porque minha infância foi de muito movimento. Joguei Futebol e Basquete na escola, fiz ginástica, joguei tênis de mesa. Foi uma infância rica, por isso eu aprendia com facilidade as atividades do decatlo. Você tem que saltar com vara, salto em altura, salto em distância, arremesso de peso, lançamento do dardo e de disco etc. Bati o recorde do salto em distância e fui recordista do decatlo, do pentatlo e de várias provas. Tive um destaque bom na época.

Pinheiros – E como era o cenário em comparação a hoje?
Barbanti – No meu tempo, os atletas treinavam uma hora, uma hora e meia no máximo. Eu já treinava duas horas. Hoje, como eles vivem do esporte, treinam quatro, cinco horas, de manhã e à tarde. Eu nunca treinei de manhã e à tarde porque estudava, afinal tinha que ter uma profissão para ganhar a vida. Não tinha jeito, o esporte era amador.

Pinheiros – Conte um pouco sobre sua carreira acadêmica.
Barbanti – Fui aluno da USP e depois professor. Na minha época, os professores estavam em idade avançada, e acabei tendo oportunidades. E também sempre fui bom aluno. Então com vinte e dois anos, já estava na USP, e lá fiquei a vida toda. Fiz a carreira completa até me tornar professor titular. E, mesmo quando deu o tempo de aposentadoria, não quis parar.

Pinheiros – E como foi a passagem pelo exterior?
Barbanti – Fui fazer especialização em treinamento esportivo na Alemanha, consegui bolsa. Lá fora, o conhecimento era maior, e estava mais disseminado. Aqui não tinha muito material escrito, livro, quase nada. Minha experiência competindo na Europa ajudou na adaptação. Fiz mestrado na Alemanha e doutorado nos Estados Unidos, para ver outra realidade e poder comparar. São dois mundos completamente diferentes na área esportiva. Tive a oportunidade de difundir esse conhecimento pelo Brasil.

Pinheiros – Em seu livro mais recente, você destaca a diferença entre esporte e atividade física.
Barbanti – São coisas completamente distintas. Esportista é quem pratica esporte. Não é quem vai na academia, não é quem vai caminhar no Ibirapuera, ou mesmo correr. Esses estão fazendo exercício, atividade física. Primeira coisa para ser esporte: tem que ter competição. A segunda condição é medir forças segundo regras pré-estabelecidas, institucionalizadas. Quem é do esporte precisa de atividade física para treinar movimentos específicos. Se eu quero melhorar meu Tênis, não posso treinar músculo isolado, tenho que treinar movimentos que ajudem meu jogo, pegar exercícios que tenham uma certa semelhança com o que faço na quadra.

Pinheiros – Cada esporte demanda um treino diferente?
Barbanti – Com certeza. Por exemplo: um jogador de Vôlei tem que saltar para bloquear a bola de ataque do adversário. Como é que se salta? Empurrando o chão. Existe uma força que me empurra de volta. Para melhorar isso, tenho que achar um exercício que faça uma imitação daquilo que se faz na quadra. Mas aí tem gente que vai e põe o atleta para fazer leg press. É o mesmo músculo do salto, mas a ação muscular é diferente. Empurrar o solo é muito diferente de empurrar com o pé fora do solo. A transferência desse leg press é muito pequena. Já se eu fizer algo parecido com o bloqueio, com carga, a transferência é maior. Tem exercícios que podem até prejudicar o jogo. Por exemplo, para quem joga Tênis, que é feito de movimentos curtos e rápidos, corrida longa é um veneno. Se ficar correndo 5 km, por exemplo, perde o jogo. Tem que saber dosar. Para a saúde, qualquer coisa que você fizer será boa. Agora, para melhorar em um esporte, tem que treinar movimentos específicos. Não tem por que ficar gastando horas na academia, isso é estética. Atleta não precisa ter o braço gigante nem o bumbum definido.

Pinheiros A formação esportiva na infância deveria ser mais generalista?
Barbanti – Criança não é especialista. É generalista. Não faz sentido, por exemplo, colocar uma criança pequena para jogar Tênis, a raquete é maior que ela. Criança tem que aprender uma variedade grande de movimentos. A minha geração não precisou porque eu brincava na rua, aprendi a nadar no rio, subi em árvore. Hoje, essa garotada não sobe nem escada. Falta uma introdução generalista: toda criança deveria passar primeiro pelo CAD (Centro de Aprendizado Desportivo), passando por todos os esportes de maneira lúdica, com uma riqueza de movimentos. Quando chegar a hora de optar por um, terá uma base. Mas às vezes os pais têm uma mentalidade diferente e fazem pressão para entrar na escolinha o mais cedo possível. Não é quem começa mais cedo que vai ser bom, é quem tem boa formação. Isso é fruto de evidências científicas.

Pinheiros – Qual a ideia por trás do CIAA?
Barbanti – O CIAA foi criado em 2000. A ideia era adiantar a preparação física, que até então começava só quando saía do juvenil para o adulto. O juvenil já precisa de exercício físico depois da puberdade, para aprender a jogar, nadar e correr melhor. Como o jovem não tem mais a formação de movimentos, nós temos que oferecer isso a ele. Aí eu fiz um projeto, apresentei, e foi criado o CIAA. Nós atendemos quinze modalidades do juvenil para baixo; o atleta faz seu treino técnico e tático e, depois, vai lá fazer preparação física na Pista de Atletismo e na nossa sala de musculação. É um serviço gratuito. Passei cinco anos fora do CIAA, porque a USP queria criar uma escola de educação física fora de São Paulo, e me convidaram para instalar uma no campus de Ribeirão Preto. Eu fui lá, ajudei a construir a escola, e voltei há um ano para o CIAA. Exercício físico é uma coisa muito séria. Posso te tornar campeão do mundo, mas posso acabar com a sua carreira, se fizer coisa errada. Então no ano passado dei aula duas vezes por semana para a equipe, primeiro teórica, depois prática, corrigindo algumas coisas. Porque mandar o atleta dar cinco voltas na pista, qualquer um manda. O que eu quero é alguém que saiba o que isso faz no corpo.

Pinheiros – Qual a influência da preparação física sobre o resultado?
Barbanti – O resultado nunca depende de um fator só. É um conjunto de coisas. Eu fui preparador físico da seleção brasileira de Basquete, nós fomos campeões pan-
-americanos em cima dos EUA. Na etapa final dos jogos, nenhum time tinha o preparo que nós tínhamos. Agora, não falo que foi a preparação física que fez aquilo. Eu falo que contribuiu. Mesma coisa com o Cesar Cielo, que passou pelo CIAA e melhorou seu tempo. Claro que a preparação física ajuda. Mas a saída dele melhorou, tem a parte técnica. É difícil quantificar. Não tem esporte de alto nível que não tenha um nível adequado de preparação física. A Bia Souza, do Judô, treina forte lá no CIAA. Ela levanta muito peso, precisa de força. Por isso, a minha filosofia é, em primeiro lugar, recuperar os movimentos que a vida roubou das nossas crianças. A tecnologia, lamentavelmente, veio para ajudar, mas substituiu o movimento, e isso é errado. E o que menos me preocupa é o resultado. Porque o jovem esportista de alto nível, mesmo que não seja um campeão, vai ser um esportista bom, e vai ser associado do Clube por mais um monte de décadas.

Atletas fazem atividade com o CIAA na Pista de Atletismo

FOTOS: GABRIELLA GARBIM/ECP