Prestes a tomar posse na Academia Brasileira de Letras, Lilia Schwarcz fala sobre livros, novos projetos, Brasil e o Clube onde gosta de correr
Lilia Schwarcz vive correndo.
Corre para dar conta dos inúmeros compromissos, que incluem cursos nos Estados Unidos, a produção de livros e até a visita ao alfaiate que está confeccionando o tradicional fardão que ela envergará para tomar posse na Academia Brasileira de Letras, onde ocupará a cadeira número nove.
E corre também literalmente, na Pista de Atletismo do Pinheiros, clube que frequenta sempre que a agenda lotada permite e que ela considera “um oásis no meio da cidade”.
Aos 66 anos, Lilia é uma das intelectuais mais atuantes do País. Desde 2009, passa parte do ano em Nova Jersey, ministrando aulas na Universidade de Princeton, uma das mais prestigiosas instituições de ensino superior dos Estados Unidos. Depois de atuar como visiting professor, assumiu o cargo de global scholar, com responsabilidade de estabelecer laços acadêmicos entre os dois países.
Antropóloga e historiadora, Lilia é escritora premiada e fundadora, junto com o marido, Luiz Schwarcz, da editora Companhia das Letras, responsável por boa parte do repertório literário de mais de uma geração.
Entre seus livros, alguns em parcerias, estão O sequestro da Independência, A longa viagem da biblioteca dos reis, As barbas do imperador, Brasil: uma biografia, Lima Barreto: triste visionário, Racismo no Brasil e o infantil Óculos de cor, que, aliás, acabou de chegar à Biblioteca do Pinheiros.
No início de abril, semanas antes da programada volta ao Brasil, Lilia conversou com a revista Pinheiros para falar de ABL, livros, Brasil e, claro, do ECP.
Pinheiros Tem havido mais interesse pelo Brasil nos Estados Unidos, pelo menos na área acadêmica?
Lilia – O interesse pelo Brasil é muito grande. A minha área é a confluência entre história, antropologia e estudos literários. Há muito interesse pela cultura e história, pelo fato de o Brasil ter sido uma monarquia e o último país a abolir a escravidão moderna, aquela que o tráfico negreiro criou.
Pinheiros Hoje a Academia Brasileira de Letras tem entre seus membros Gilberto Gil, Ailton Krenak, Fernanda Montenegro e agora você, em um ambiente predominantemente branco e masculino. A ABL mudou?
Lilia – Estou entrando no momento em que a Academia tem mostrado abertura. A ABL só passou a aceitar mulheres a partir de 1976. Desde então, onze mulheres foram eleitas. Eu serei a quinta mulher na atual formação da ABL. Ainda é muito pouco. Eu entro com a perspectiva de levar uma pauta mais feminista para a Academia.
Pinheiros Já tirou as medidas para o fardão?
Lilia – Como eu vinha para os Estados Unidos, tive que me antecipar e já comecei a fazer meu fardão. Mas, como estou fora do Brasil, não posso fazer as provas, e marquei a posse, em princípio, só para 21 de junho. Agora depende do alfaiate e da conclusão da burocracia.
Pinheiros Ainda estamos no bicentenário da Independência, considerando-se que a primeira Constituição e o primeiro reconhecimento, dos EUA, datam de 1824. Acredita que O sequestro da Independência tenha contribuído para desconstruir o mito do Sete de Setembro?
Lilia – Esse é um livro que parte das imagens. Muitos acreditam que as imagens só ilustram, dão um lustro, mas muitas vezes elas constituem valores e o nosso imaginário. É o caso da tela do Pedro Américo, uma tela que foi encomendada pelo Segundo Reinado e ficou pronta só em 1888, muito depois da Independência. O próprio artista reconhece que ela não tem um caráter verista. Ele até diz: “Em nome da nação, eu sacrifico a geografia”.
O livro discute como as imagens ajudaram a divulgar a visão de que a Independência foi um acordo de cavalheiros, uma Independência só palaciana, sem o protagonismo da sociedade civil que, na verdade, existiu, com lutas e batalhas, como aconteceu na Bahia.
Pinheiros Você é uma escritora profícua, com mais de trinta livros publicados. Qual o próximo projeto editorial?
Lilia – Eu gosto muito de escrever, minha vida é pesquisar. Tenho um livro novo saindo do forno, talvez no começo do segundo semestre. Chama-se Imagens da branquitude – A presença da ausência. É um estudo sobre a construção dessa imagem de um país em que o predomínio branco é tomado como dado da natureza, quando a branquitude é uma situação de privilégio, de prestígio. Durante muito tempo, nós, pessoas brancas, estudamos os outros, mas não estudamos nós mesmos. E é preciso ter letramento racial para entender o que é essa sociedade.
Pinheiros Esse letramento começa na infância?
Lilia – Sim. As nossas crianças são submetidas a um currículo por demais ocidental, por demais branco, por demais masculino. Eu não quero retirar da história nada nem ninguém, mas quero incluir muita gente. Ou seja, precisamos falar das nossas várias origens, das várias Áfricas que chegaram forçadamente ao Brasil, das centenas de povos indígenas que estão presentes na nossa formação. Precisamos de protagonistas femininas, de mais protagonistas negros.
Em Óculos de cor, um livro lúdico, eu conto a história de duas crianças. Uma delas é o Alvo, um menino, filho de Branca e de Neves, e que tem uma irmã, Clara. É um bom menino, mas ele não conseguia ver em cores.
Aí entra uma colega, a Ebony, e muda toda a história de vida dele. Alvo passa a ver o mundo de outra forma. Mas é uma conversa entre duas crianças. Eu não responsabilizo a Ebony pela formação do Alvo, assim como não acho que oAlvo é um vilão. Ao contrário, é um menino alegre, vivo e curioso.
Eu li essa história para crianças, e o livro acabou passando por muitas versões, até tomar a forma em que foi publicado. Percebi que não é preciso simplificar nada para as crianças. Elas têm um pensamento complexo sensacional. O que nós precisamos, em todas as faixas etárias, é dar boa informação. Espero estar contribuindo para isso, para que essas questões tão centrais da nossa nacionalidade comecem a ser discutidas desde a infância. As crianças têm uma abertura que muitas vezes é maior que a dos adultos.
Pinheiros Com tantas atividades que você tem, sobra tempo para frequentar o Clube?
Lilia – Frequento o Clube na parte de esportes — eu corro. Já frequentei muito com meus filhos quando eram pequenos, depois com os meus netos. A milha filha e o meu genro correm sempre com a Eliana Reinert — a grande Eli, professora de Corrida de Rua, que já me treinou, e treina gerações no Clube há mais ou menos trinta anos.
Ser associada do Pinheiros é um privilégio. O Clube é um oásis no meio da cidade tão construída. Mas, como todos os clubes, o Pinheiros carrega um perfil bastante definido socialmente. Torço para que o Clube cada vez mais dialogue com a população paulista de forma geral, como, aliás, tem feito nas festas e em várias ocasiões.
OBRAS DE LILIA SCHWARCZ DISPONÍVEIS NA BIBLIOTECA DO PINHEIROS:
A longa viagem da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à Independência do Brasil
As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos
Brasil: uma biografia
Lima Barreto: triste visionário
O sol do Brasil: Nicolas-Antonie Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de D. João
Racismo no Brasil
Óculos de cor: Ver e não enxergar
FOTO: DIVULGAÇÃO