Pausa Literária

30/03/2023 30/03/23

A seção foi criada para apresentar os contos de associados participantes das atividades literárias do Clube. Este mês será publicado o texto “Rotina”, de Gerald Misrahi, coordenador do Clube de Leitura.

Os interessados em fazer parte das atividades devem enviar um e-mail para administracaocultural@ecp.org.br

ROTINA


Matheus acordou cedo, como de hábito. Era domingo, portanto foi poupado do rufo dos bate-estacas plantando as fundações de mais um prédio na vizinhança. Afastou cobertas e lençóis cuidadosamente, evitando incomodar Melinda. Sentado na beira da cama, alongou os músculos devagar, sem poder evitar caretas de dor.

Andando no estreito corredor que levava ao banheiro, já visitado duas vezes durante a noite, conteve-se para não dar o vexame de uma terceira vez. Apoiou-se cuidadosamente nas paredes para não derrubar os quadros que contavam a história da família. No destino, desviou seu olhar do espelho, evitando comprovar o pior aspecto da idade, o visual apresentado de madrugada, após uma noite maldormida remoendo lembranças, culpando-se pelas vezes em que falou quando deveria ter ficado calado e permaneceu calado quando deveria ter falado.

A água gelada aspergida no rosto, na tentativa de sair do torpor matutino e despertar-se para enfrentar o dia, só serviu para recordar-lhe de que precisava trocar o bujão de gás.

Aí começou o delicado ritual de se barbear, tentando evitar os cortes que provocavam as torrentes de sangue estimuladas por anticoagulantes receitados pelos médicos do SUS. Em seguida iniciou a lenta e cautelosa descida pela apertada escada com corrimão só de um lado – o esquerdo –, justamente aquele onde a artrose no ombro se fazia lembrar.

Na sala de estar seguiu a rotina de sempre. Abriu a porta de entrada e saiu no quintal, abraçando o peito devido ao frio. Pegou o jornal molhado pelo orvalho, apesar do saco plástico. Voltou para dentro, colocou pratos e talheres na mesa, tirou o pãozinho do congelador e o queijo da geladeira, juntou os dois e colocou esse casamento no forno elétrico. Preparou o café na máquina e só então chamou Melinda.

Ela desceu resmungando por ter sido acordada tão cedo. Ou era isso que ela sempre achava. Sentados frente a frente, ficaram mudos, pois não havia mais nada a se falar depois de cinquenta anos. Lavou a louça, vestiu um agasalho, leu o jornal e deu uma volta no quarteirão com a mulher, tomando cuidado para não torcer os tornozelos nas calçadas quebradas.

Daí por diante enfrentou um dia igual aos outros, com a diferença de que hoje é domingo, dia de visita dos netos.

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Matheus não acordou cedo e, aproveitando o silêncio, ficou na cama. Os bate-estacas, a essa altura cada vez mais próximos, estavam quietos. Resolveu finalmente se levantar e não precisou tomar cuidado para afastar cobertas e lençóis. Desceu a escada, agora com corrimãos dos dois lados, colocados por insistência de sua filha.

Seguiu a rotina, só com um prato, uma xícara e o pão de ontem. Usou a xícara que tinha sido da Melinda. Ele quebrara a dele e não comprara outra. Não lavou a louça, nem a da véspera. Deu uma rápida olhada nos jornais acumulados dos últimos três dias, quando também deixara de fazer a barba, e preparou-se para mais um dia – de pijama.

Era domingo, porém os netos não viriam. Pedrinho tinha seu futebol e Clarinha, seu novo namorado.